maria carolina, na pela de anna karina, foi cúmplice de inúmeros namorados, maridos, pais de família dispostos a trair suas parceiras. mas ela também foi complacente da frustração de workaholics solteiros de meia-idade que esqueceram de viver e do ódio de celibatários involuntários dispostos a destruir o próprio mundo e a vida dos outros. maria carolina acreditava que bastava canalizar tais vivências em palavras para enfim fazer nascer seu primeiro romance policial. no entanto, ela não anda satisfeita com os primeiros rascunhos. na realidade, maria carolina não sente veracidade no que escreve.
ainda assim, todos os dias maria carolina mantém seu compromisso com a rotina, para manter a constância, digna da vocação de qualquer bom romancista. após o jantar, ela se recolhe ao escritório escuro, senão pela luz de mesa de lâmpada quente e a tela do computador. uma xícara de café do lado disfarça a dor do cansaço noturno, que irá sustentar cada palavra escrita, cada cena imaginada.
em dias inspirados, maria carolina chega a escrever três páginas, em outros sequer um parágrafo. hoje é um destes dias. maria carolina coloca uma música para ajudar a concentrar, depois confere o site de notícias, em seguida, ela troca de música, depois busca um gole de energia no resquício de café de dentro da xícara vazia. de repente, a parede branca projeta um distante horizonte, que a hipnotiza e inverte seu complexo psíquico.
maria carolina tem um profundo receio de soar como a namorada ciumenta, insegura e que cobra por satisfação. maria carolina tão pouco possui medo de ser traída, pois ela reconhece de longe, e principalmente, de perto, o homem que trai: suas desculpas bem elaboradas, o tom estranho que esconde o nervosismo por trás das mentiras contadas, as mudanças súbitas de assunto. ao menos, ela acredita que é capaz de reconhecer. para maria carolina, a ideia de não conseguir enxergar sinais evidentes de traição por seu coração estar apaixonado é aterrorizante, uma vez que, tornaria poeira aquilo que ela considerava ser o único aspecto positivo cultivado ao longo dos seus dolorosos anos de prostituição.
ultimamente, ao menos uma vez por semana, roberto tem chegado do trabalho mais tarde que o de costume. o fim de trimestre pode justificar, dado que o escritório de advocacia que ele trabalha é exigente e uma posição como a dele é muito concorrida. maria carolina apoia a dedicação do namorado. contudo, na última semana, ele chegou muito tarde a despertando com o barulho das chaves na porta. maria carolina não fez questão de o receber. ao invés disso, optou por apenas conferir o horário no relógio do celular - 2h17 - e permaneceu na cama de olhos fechados. um esbarrão na cadeira da mesa de jantar na sala, depois a maçaneta do quarto se abrindo. roberto tirou o paletó, a camisa, a calça e colocou no cesto de roupas sujas. após isso, desabou na cama, mergulhando rapidamente num profundo sono. na manhã seguinte, de alguma forma, ele conseguiu acordar antes dela. a roupa suja já não estava mais presente, a máquina de lavar já estava em ciclo de centrifugação e roberto já estava de saída, quando maria carolina chegou na cozinha para tomar seu café da manhã.
a única forma que maria carolina conseguiria voltar a se concentrar na escrita do livro seria encontrando uma resposta, que fosse enfim definitiva. assim, ela se levanta, vai até ao quarto do casal. o paletó cinza de roberto está no armário, ainda com cheiro de amaciante, sugerindo para maria carolina que ele deve ter saído com o preto. depois, ela confere o cesto de roupas sujas, onde duas camisas sociais repousam. maria carolina examina cada uma pelo torso, pelas mangas, pela gola, inalando um distinto, mas inconfundível aroma.
no entanto, naquele mesmo instante, a maçaneta da porta de entrada da sala de estar começa a ressoar. maria carolina joga com urgência as peças de volta para o cesto e se encaminha para o outro cômodo, direto ao encontro de roberto, que acabara de chegar. o mesmo beijo, abraço, carinho de todo dia, acompanhado do aroma, que passaria a ser, a partir de agora, inesquecível.