o café marcado naquela tarde de sábado era uma tentativa de celebração ao novo endereço do pintor. agora, ele mora num velho apartamento na avenida são joão, bem perto da galeria. contudo, eduardo esperança ainda sentia vergonha por ter estado ausente da vida de maria carolina por tanto tempo. maria carolina, por sua vez, sentia vergonha por sua repentina aparição ter causado o fim do casamento de 12 anos de seu pai com josefina.
"era um divórcio anunciado", o pai dizia para amenizar.
por isso, ele sempre retomava ao assunto da dedetização, para ambos não ficarem em silêncio. uma noite, maria carolina o telefonou perguntando se poderia passar a noite em sua casa - ainda na zona norte -, por conta de uma dedetização de emergência contra aranhas que ela precisava fazer em seu apartamento. desde então, toda vez que se encontram, ele pergunta se mais nenhuma aranha apareceu. por carinho, maria carolina respondia que não.
"posso conhecer a sua galeria?", sugere maria carolina.
"eu só trabalho nela", no entanto, a lembrança de que as chaves estavam no bolso do casaco o faz mudar de ideia.
o trajeto até a galeria, na república, não era longo e, no geral, as ruas do centro não costumam o amedrontar. contudo, eduardo esperança estava mais atento do que nunca. além disso, ele optou tomar um caminho mais longo, por dentro do bairro, ao invés pela avenida são joão, que seria mais rápido. ele queria evitar contratempos a qualquer custo.
ao chegar na galeria, maria carolina se depara com uma série de quadros expostos de paisagens turísticas paulistanas, como o copan, o masp ou o ibirapuera. apesar da vontade dela de analisar cada um individualmente, eduardo esperança diz que eles possuem nenhum valor, além daquele que aparece na etiqueta, e pede que ela o acompanhe na sala do escritório da galeria.
eduardo esperança revela, por baixo de um lençol, 7 quadros que estavam enfileirados num dos cantos do cômodo. 6 prontos, um por finalizar. todos de seu trabalho autoral. maria carolina puxou uma cadeira. ela sabia que eduardo esperança queria que, ao menos por uma vez, alguém o ouvisse atentamente falar sobre seu próprio trabalho. assim, ele contou que as escolhas das cores é para remeterem o aconchego de uma sala de estar. ele explicou como as paisagens são apenas inspiradas no centro de são paulo, mas que na verdade são criações. ele explicou como a sombra é um elemento constante no seu trabalho, mas os elementos que produzem iluminação indireta, como um abajur ou um poste, é que são os protagonistas, mais até que a própria protagonista.
"josefina?".
"o que eu estou finalizando será o primeiro sem uma figura humana".
"por que as personagens estão sempre sozinhas, parecendo que estão em conflito consigo mesmas?”.
"porque é quando a vida realmente acontece".
maria carolina ficou pensativa com a resposta dada por eduardo esperança.
"sabia que você não é o único na família que é artista?".
"não! por que?", a informação anima eduardo esperança.
"eu escrevo".
"o que você escreve?".
"histórias que eu escuto", ela responde, complementando, sem ter certeza se deveria: "mas queria encontrar um tema só meu".
"me manda alguma coisa para eu ler".
"sim…".
eduardo esperança e maria carolina não viram o tempo passar. a noite já havia tomado a cidade e ela tinha um outro lugar para estar. maria carolina se oferece para o acompanhar de volta até ao apartamento, mas ele prefere ir sozinho, por motivos de segurança. quando os dois alcançam o ponto de táxi para maria carolina, ele se despedem, mas antes dela entrar no carro, maria carolina percebe que eduardo esperança tem algo a dizer.
"aquele dia da dedetização".
"o que tem?".
"foi a primeira vez que eu senti que era um pai de verdade".
maria carolina abraça eduardo esperança.
"desculpa".