o cinema subterrâneo do conjunto nacional é vizinho da livraria cultura. local ideal para passar tempo, enquanto o seu par para a sessão do ozualdo candeias está atrasado. usufruindo da criatividade dos amantes apaixonados, roberto sabia que seria uma ótima ideia presentear maria carolina com um livro. o segredo era não haver pretexto.
no entanto, havia um obstáculo. roberto havia lido até então apenas alguns poucos clássicos nacionais e internacionais, que, muito provavelmente, maria carolina também já leu. enquanto se martirizava por tamanha falha na sua formação como ser humano - usufruindo do drama digno dos amantes mais apaixonados -, roberto pediu ajuda para uma funcionária da loja, que sugeriu um nome: elena ferrante. uma mulher, uma italiana, um pseudônimo, cuja identidade é um mistério ainda a ser desvendado. elementos suficientes para fazer roberto, inundado num mar de ingenuidade digno dos amantes muito apaixonados, sentir-se como um crítico literário que acabou de encontrar a próxima sensação do mercado editorial, que maria carolina jamais teria ouvido falar e que, por isso, iria achá-lo ainda mais interessante. ele pediu que "a filha perdida" fosse embrulhado.
"eu amei!", foi a reação de maria carolina, usufruindo da piedade digna dos amantes muito, muito apaixonados, pois ela já havia lido.
roberto sorri satisfeito.
"a elena é uma das minhas autoras favoritas", adiciona maria carolina, porém sem muita convicção, dado que em suas lembranças, os livros da italiana não estão marcados como produtores de fortes emoções, algo que maria carolina considera primordial.
"quando você terminar, eu vou querer ler também. fiquei interessado na sinopse", completa roberto.
maria carolina sorri de volta, firmando o compromisso, mas também, com a certeza de que teria que o retribuir tão logo.
dessa forma, quando os dois marcaram de assistir uma sessão dos curtas de andrea tonacci, maria carolina - usufruindo da força de vontade digna dos amantes muitíssimos apaixonados - fez questão de chegar 30 minutos antes do horário combinado para também comprar um livro para roberto. ela, por outro lado, tinha certeza qual que seria o escolhido para ser presenteado: "a amiga genial", também de elena ferrante. maria carolina queria aproveitar o entusiasmo demonstrado por roberto para não errar.
roberto não esperava a surpresa e a explicação de maria carolina de que aquele era o primeiro de uma tetralogia, que a própria elena ferrante considerava um único romance, fez também emergir nele a mesma força de vontade digna dos amantes muitíssimos apaixonados de ler todos os quatro livros. e assim o fez, em tempo recorde, antes do próximo encontro dos dois, quando eles marcaram de assistir um filme do júlio bressane e quando roberto decidiu comprar mais um livro para maria carolina, mas tremendo que ela se adiantasse mais uma vez em relação ao horário marcado entre os dois, roberto chegou uma hora antes para garantir a surpresa.
"nossa, faz tempo que eu quero ler esse livro!", disse, com sinceridade, maria carolina, mas ela estava impressionada mesmo era como roberto chegou até ao presente escolhido. no caso, imerso no mundo napolitano da escritora italiana, roberto descobriu que elena ferrante havia publicado uma lista recomendando 40 livros de autoras mulheres, sendo que dentre as opções havia "a paixão segundo g.h." de clarice lispector.
maria carolina também estava impressionada pela assertividade: "a clarice é a minha favorita".
a partir do momento que a barreira dos autores nacionais foi rompida, maria carolina sabia que roberto precisava ler "as meninas" de lygia fagundes telles. por isso, quando eles marcaram de assistir um filme de rogério sganzerla, ela chegou uma hora e 30 minutos antes da sessão para também ter certeza de que iria garantir a surpresa. e um papo despretensioso sobre contos, fez com que roberto chegasse duas horas antes de outra sessão do rogério sganzerla, que eles queriam assistir, para poder comprar "feliz ano novo" de rubem fonseca para que maria carolina, enfim, conhecesse "passeio noturno". contudo, por conta do mesmo papo, maria carolina também se adiantou duas hora para comprar "felicidade clandestina", pois ela achava um absurdo roberto nunca ter lido a coletânea de contos da clarice lispector.
foi maria carolina que viu roberto primeiro.
"é esse o livro que você está procurando?", ela perguntou com o "feliz ano novo" em mãos.
"o que você está fazendo aqui?".
"eu já não sei mais".
"eu também não".
depois que encontraram "felicidade clandestina", os adiantados foram se sentar embaixo da escadaria externa da livraria cultura. não havia muito o que ser dito, o silêncio que reinava entre eles era de constrangimento, pois sabiam que alcançaram o patamar mais alto de ridículo digno dos amantes que não estão só apaixonados, mas que reconhecem que se amam. até que roberto olha para o relógio de pulso, que marcava 18h42.
"ainda falta uma hora e 48 minutos até o filme".
maria carolina olhou para roberto com um sorriso cerrado.
"a gente é besta, né?"
"é".