rosângela não tomou tempo para inventar alguma desculpa, ela queria ver tereza e isso bastava.
"ninguém atende", respondeu o porteiro.
sebastião já não trabalha mais na portaria, mas a televisão de 14 polegadas apoiada na mesa de madeira continua igual.
"a luz da sala está acessa", argumentou rosângela.
"ela deve ter esquecido".
"você viu tereza saindo de casa hoje?".
"bem, não".
a expressão do porteiro se fecha, demonstra receio.
"o que foi?", pergunta rosângela.
"vou tentar mais uma vez".
novamente, ninguém atendeu.
"você é o quê da dona tereza?", pergunta o porteiro.
"uma amiga".
"mas nunca te vi aqui antes".
"tereza foi minha noiva por dois anos, muito antes de você chegar aqui".
"entendo", assimila o porteiro, ainda um pouco aflito. "olha dona, acho que faz três dias que ela não sai de casa".
"você acha?", responde rosângela.
"tem vezes que ela chega da rua com compras do supermercado e sempre tem uma cachaça no meio". o porteiro se justifica: "sei disso, porque ajudo a dona a subir tudo". por fim, o porteiro completa: "tem vezes também que ela chega só com a garrafa mesmo e quando isso acontece, ela costuma se trancar no apartamento e sair só depois de um, dois dias e então ela reaparece com uma aparência muito, muito derrubada".
o porteiro espera alguma reação de rosângela, antes de finalizar.
"tem sido cada vez mais frequente".
"você tem as chaves do apartamento?"
"você quer entrar lá?"
"estou preocupada".
rosângela e o porteiro viram, ao abrirem a porta, um disco rodando em silêncio na vitrola, duas garrafas vazias e um corpo de bruços estatelado no chão, acima de uma poça de vômito. rosângela se jogou para buscar sinais vitais de tereza, que ainda estava de olhos abertos e levantar a sobrancelha foi sua única forma de se comunicar. tereza reconheceu a presença de rosângela, que, por sua vez, pediu para o porteiro chamar uma ambulância.
tereza ficou internada na santa casa pelos próximos três dias. rosângela esteve todo momento ao seu lado, escutando quando tereza lamentava, distraindo quando tereza se envergonhava e consolando quando tereza chorava. dentro daquele quarto de hospital, as duas encontraram vestígios de um bonito relacionamento que um dia existiu e foi rosângela que propôs o recomeço. no entanto, havia sido de tereza a proposta pelo término e, para ela, o motivo ainda continuava vívido.
"sou eu ou a agência, rosângela. não posso viver sendo uma figurante na sua vida, de novo".